quinta-feira, 11 de abril de 2013

FÉ OU AMOR? .......... Fé e amor em debate.


Fé e amor em debate

No início da década de setenta, num período em que fermentavam as crises e revoluções sociais, ideológicas e religiosas, dois intelectuais católicos franceses – o filósofo Jean Guitton e o jornalista converso André Frossard – mantiveram um diálogo aberto sobre problemas de atualidade, ao longo de vários programas radiofônicos. O diálogo era aberto porque, como hoje é tão comum na televisão, os ouvintes participavam, manifestando – no caso, por escrito – as suas opiniões.

Num dos programas, Guitton começou dizendo: “Em uma das nossas conversas anteriores, abordávamos o problema da fé, e já recebi muitas cartas a esse respeito. Um dos meus correspondentes escrevia: «André Frossard e o Sr. falaram da crise da fé; mas o essencial não é um problema de fé, e sim um problema de amor. Não importa tanto saber se se tem ou não se tem fé; trata-se de saber se se ama»…”

Penso que muitos dos jovens atuais, mesmo católicos, concordariam plenamente com a opinião desse rapaz. Não hesitariam em afirmar que o que nos faz bons e autênticos é, acima de tudo, amar, independentemente de crermos ou não, de termos esta ou aquela fé. Tanto faz a religião que cada qual tem – diriam –, o importante é amar, é ter amor e dar amor.

Para quem leia o Evangelho, não há dúvida de que Cristo dá a primazia absoluta ao amor: O primeiro de todos os mandamentos – ensina Jesus – é este: amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças. Eis o segundo: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Outro mandamento maior do que estes, não existe (Mc 12, 29-31).

Então, como se explica que Frossard, bom conhecedor do Evangelho, comentasse a seguir naquele programa? “No Evangelho, o que Deus mais admira, o que provoca a admiração de Cristo, é, sobretudo, precisamente a fé. Chega a dizer, com uma espécie de espanto [ao ver a fé do centurião romano que pede a cura do seu servo]: «Nunca tinha visto tamanha fé em Israel». Essa fé faz parte das virtudes teologais e não pode ser separada do amor”.

Na mesma linha, Guitton reforçou: “Se tivesse que escolher entre a fé e o amor, creio que daria preferência à fé. Partindo da fé, estou persuadido de que encontraria o amor, sem as falsas ilusões nem os equívocos que costumam acompanhá-lo”. E acrescentou ainda: “Entre a fé e o amor há uma corrente de força e de luz, que faz com que o verdadeiro amor leve à fé, e a verdadeira fé leve ao amor”(Revista Palabra, Madrid, maio de 1971, pág. 9.).

Esses comentários não são nenhuma tolice. Pelo contrário, apontam para questões decisivas, muito delicadas, em que é fácil derrapar sem perceber, com conseqüências desastrosas; questões de que depende precisamente a autenticidade da bondade e da fé. Por isso, interessa-nos refletir com um pouco de calma a esse respeito.

A fé abre a porta ao amor

Tanto Guitton como Frossard partem da base de que a fé precede o amor, mais concretamente, de que a fé é uma condição para podermos amar com um amor autêntico.

Para entender exatamente o que querem dizer, é preciso ter presente que se trata de dois católicos inteligentes e cultos. Portanto, a noção de fé que eles possuem não é um conceito infantil, vago ou confuso. Pelo contrário, têm a noção clara e precisa que deveria ter todo e qualquer católico que conheça ao menos o catecismo da primeira comunhão, a mesma noção que nos expõe o Catecismo da Igreja Católica: “A fé é primeiramente uma adesão pessoal do homem a Deus; é ao mesmo tempo, e inseparavelmente, o assentimento livre a toda a verdade que Deus revelou” (n. 150).

Por outras palavras: ter fé é, antes de mais nada, crer em Deus: crer que Deus existe, que é Alguém que pode ser encontrado, conhecido e amado, e aderir pessoalmente a Ele; e depois disso, ter fé é aceitar, assentir às verdades que Deus revelou – que nos manifestou claramente – sobre Si mesmo, sobre o sentido da vida humana, sobre os valores da existência, sobre a nossa missão na terra, sobre o bem e o mal, sobre a verdadeira religião, etc.

Sabendo que a fé é isso, uma pessoa de boa vontade chega facilmente a duas conclusões:

* Primeira: como bem sabemos, só podemos amar a quem conhecemos. Ninguém ama de verdade um desconhecido – um nome lido por acaso na lista telefônica –, nem uma figura puramente imaginária. Em contrapartida, podemos amar e admirar de verdade uma pessoa das nossas relações, que conhecemos bem; e também uma pessoa que nunca vimos, mas que conhecemos a fundo, como se a tivéssemos visto, por referências, leituras e outras informações objetivas. Aplicando este raciocínio ao amor de Deus, está claro que só podemos amar a Deus de verdade se o conhecemos bem. E um cristão sabe que só o conhecemos bem se sabemos o que Ele nos manifestou acerca de si mesmo por meio de Jesus Cristo: Ninguém jamais viu a Deus. O Filho único [Jesus], que está no seio do Pai, foi quem o revelou (Jo 1, 18).

* Segunda: Deus revelou-nos – sobretudo pelos ensinamentos de Cristo – o verdadeiro bem e o verdadeiro mal, os valores certos da vida, os caminhos da bem-aventurança, da felicidade terrena e eterna, ou seja, da autêntica realização humana, individual e social. Ora, ninguém pode negar que é impossível amar o próximo de verdade se não sabemos o que é bom para ele, pois amar é querer bem, querer o bem da pessoa amada. Mas como poderemos proporcionar aos outros o verdadeiro bem se o ignoramos?

Tudo isto evidencia que primeiro deve vir o conhecimento – que nos é dado sobretudo pela fé em Jesus Cristo –, e só depois pode vir o amor. Neste sentido, os dois intelectuais franceses tinham razão.

Por não perceber isso é que muitas pessoas de muito boa vontade e muito pouca doutrina tropeçam e se afundam. Querem uma religião “autêntica”, sem as “firulas” – assim falam às vezes – das doutrinas, dos dogmas, dos ensinamentos da Igreja; querem uma fé “sincera”, de coração, com “pouca teoria e muito amor”. Na realidade, padecem de um vácuo de fé, de uma ignorância leviana, que os leva a amar mal – e a causar até um grande mal aos outros – ou a não amar em absoluto. É desse modo que se forja a triste inautenticidade de tantos “autênticos”.

Fé e “fés”

Talvez os esclarecimentos anteriores se destaquem mais se os colocarmos contra o pano de fundo das “fés que não são a fé”; por assim dizer, das fés falsas, que parecem ouro, mas são barro.

Vejamos um bom elenco dessas “fés” inautênticas, em confronto com a fé verdadeira, feito por um escritor cristão, Michel Quoist:

“A fé não é:

* uma impressão ou um sentimento;

* uma certa forma de otimismo em face da vida;

* a satisfação de uma necessidade de segurança.

“Também não é:

* uma opinião;

* uma simples regra de bom comportamento moral;

* uma convicção baseada apenas no raciocínio;

* uma evidência científica;

* um hábito social, fruto da educação.

“A fé é, em primeiro lugar, uma graça (recebida em germe no batismo), quer dizer, um dom de Deus. Essa graça ajuda-nos a reencontrar uma pessoa viva, Jesus Cristo; permite-nos adquirir a certeza de que Ele fala a Verdade, de que o seu testemunho – palavra e vida – é exato. Com a força dessa certeza, a fé consiste então em esposar o seu olhar, a sua visão de nós mesmos, dos outros, das coisas, da humanidade, da história, do universo, do próprio Deus, e comprometer-se em função desse olhar” (Michel Quoist, Réussir, Les Éditions Ouvrières, Paris, 1961, pág. 201).

Comentemos, por enquanto, só a primeira parte desse texto. O autor começa dizendo o que a fé “não é”. Não custa muito perceber que isso – o que a fé “não é” – coincide exatamente com o que grande quantidade de jovens e menos jovens acham que “é” a fé, pelo menos a “fé” deles.

Para muitos deles, com efeito, a fé não passa de um sentimento; ou então é uma simples opinião pessoal, uma crença que cada qual escolhe, não se sabe bem como, ou, melhor, sabe-se, sim: de acordo com os seus interesses.

A pseudofé dessas pessoas parece-se muito com o mitológico leito de Procusto, o estalajadeiro grego que tinha na hospedaria uma cama-padrão. Se o hóspede era mais comprido do que o leito, serrava-lhe o que sobrava das pernas e deixava-o esvaindo-se em sangue; se era baixinho, esticava-o pela cabeça e pelos pés até torná-lo do tamanho do leito, mesmo que com isso acabasse com a vida do coitado. O importante era “adaptar” todo o mundo ao formato do leito.

Da mesma forma, muitos, que se julgam autênticos, só aceitam as verdades religiosas e morais se se “adaptam” – mesmo que seja deturpando-as, retalhando-as, arrancando-lhes pedaços vitais – ao formato do leito do seu comodismo, da sua sensualidade, da sua ambição, da sua cupidez…, quer dizer, ao formato dos seus sete pecados capitais, que eles não estão dispostos a combater.

Por isso, se há, por exemplo, um preceito da Igreja que, concretizando o terceiro mandamento da Lei de Deus, manda ir à Missa aos domingos e dias santos, eles acharão “careta” levá-lo a sério. Tal preceito só seria autêntico se se adaptasse ao leito de Procusto da sua moleza, dos seus planos de fim de semana, dos seus gostos e do seu prazer. Não se adapta? Corta!

Se, para pôr outro exemplo, o sexto e o nono mandamentos da Lei de Deus ordenam que se respeitem amorosamente os planos divinos nas coisas relativas ao sexo – à faculdade de transmitir a vida humana –, eles vão rir-se desse “plano divino” – dentro do qual justamente se ilumina o valor da castidade e da fidelidade – e dirão que o sexo é para gozar (como a cerveja, o sorvete, a coca-cola, a praia e as drogas) e que o resto são histórias.

Em conseqüência dessa mentalidade, o “deus” deles – tal como a religião deles – é um falso “deus” plástico, ajeitado, domesticado, moldado pelos dedos do egoísmo, da condescendência, da vida fácil, do consumismo, do prazer, do descompromisso…; em suma, um “deus” falsificado que se adapta ao leito de Procusto da sua falsíssima autenticidade. Não é, absolutamente, o Deus vivo e verdadeiro (1 Tess 1, 9). É somente um ídolo, obra das suas mãos (Salmo 135, 15).

Uma graça e uma boa disposição

O autor acima citado, além de dizer aquilo que a fé não é, comenta também o que é. Digo que “comenta”, porque usa palavras simples, conversacionais, sem pretender formular uma definição teológica. Começa essa parte – como víamos – com uma afirmação categórica: “A fé é, em primeiro lugar, uma graça, quer dizer, um dom de Deus”.

É coisa que muitos esquecem e, por isso, são poucos os que rezam, pedindo a Deus a fé, ou o aumento da fé, que tanta falta lhes faz; e também são poucos os que procuram ter a alma preparada para recebê-la, purificando-a dos obstáculos que bloqueiam a recepção da fé.

O principal desses obstáculos é a má disposição do coração, mais ou menos consciente. Geralmente, é a má vontade que nos leva a não querer ouvir falar de Deus, a manter uma voluntária indiferença, a não querer “saber” das coisas de Deus, para não termos que incomodar-nos, corrigir-nos, comprometer-nos e mudar.

Mas, quer queiramos ouvi-lo quer não, Deus fala-nos, e fala claro. Abramos a Bíblia, mesmo que seja ao acaso. Logo perceberemos que Deus nos procura sem cessar; que se dirige de mil modos a cada um de nós; que se “abre” conosco, oferecendo-nos o seu amor; que nos quer salvar, enviando-nos e entregando-nos, para isso, o seu Filho, Jesus Cristo. Como diz o autor da Carta aos Hebreus: Muitas vezes e de diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais pelos profetas; ultimamente falou-nos pelo seu Filho (Hebr 1, 1-2).

Falou-nos pelo Filho. Jesus Cristo, desde o seu nascimento em Belém, “fala”, não cessa de falar. Fala com o seu exemplo, fala com a sua palavra, fala, por meio do Espírito Santo, dentro do nosso coração. Ele é a verdadeira Luz que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem (Jo 1, 9). É a luz que resplandece nas trevas, apesar de que, muitas vezes, as trevas não o recebam (cf. Jo 1, 5).

Mas, como Ele próprio dizia – e já Isaías profetizara antes –, há muitos que, diante dEle e das suas palavras, vendo não vêem, e ouvindo não ouvem (cf. Lc 8, 10). Por quê? Porque o seu coração se endureceu: taparam os seus ouvidos, e fecharam os seus olhos, para que os seus olhos não vejam, e os seus ouvidos não ouçam, nem o seu coração compreenda; para que não se convertam e eu os sare (Mt 13, 15). E, se nos perguntarmos ainda por que fizeram isso, Jesus dir-nos-á mais: Porque todo aquele que faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. Mas aquele que pratica a verdade [nós diríamos, o “homem autêntico e sincero”] vem para a luz (Jo 3, 20-21).

Só quem é sincero, reto e bom (Lc 8, 15), é capaz de abrir os olhos e o coração a Deus.

Mas, e quando já existe essa boa disposição? Isso vale muito, mas não basta. Temos que compreender que as verdades que Deus nos revelou são de uma grandeza tão indizível, de uma claridade tão intensa e deslumbrante, que os olhos da mente – as forças da razão humana – não são capazes de captá-las plenamente, de abrangê-las até ao fim. É uma coisa análoga à que acontece com a luz do sol: certamente um cego não a pode ver, porque carece de toda a capacidade visual; mas também não consegue vê-la quem tem boa vista, se encara o sol diretamente, devido ao excesso de luminosidade; não é que lhe falte capacidade visual; é que essa capacidade é limitada, e não suporta uma luz tão forte.

Há verdades referentes a Deus que não excedem a capacidade visual da nossa razão (por exemplo, chegar à conclusão de que Deus existe, é criador, é bom, etc.). Mas há outras muitas que a ultrapassam (como o conhecimento dos desígnios e planos de Deus sobre a Redenção do mundo, a vida íntima da Santíssima Trindade, o mistério de Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, etc.). Para podermos “ver” essas realidades, precisamos de outra “visão” mais poderosa. Pois bem, essa nova potência visual é justamente a que a graça da fé comunica à alma; é como se Deus nos emprestasse os seus próprios olhos.

“Poderia talvez comparar-se a alma cristã – escreve Boylan – a um piloto que voa às cegas, que segue o rumo e as ordens pelo rádio. Tem de estar equipado com um aparelho receptor devidamente sintonizado [...]. A alma cristã está em situação semelhante. Precisa de um equipamento sobrenatural para receber e acatar a direção de Deus com certeza e confiança” 

Pe. Francisco Faus

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